A relação entre a Odontologia e o sono é muito mais conhecida entre os brasileiros do que a relação entre a diabetes e periodontite, por exemplo. O maior conhecimento sobre essa conexão deve-se ao fato de boa parte das pessoas ter ou conhecer alguém com distúrbios do sono e relatar dores na face, principalmente na região da mandíbula e maxilar, ao acordar.
A Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) fez uma pesquisa em 2023 e registrou que mais de 70% dos brasileiros têm problemas para dormir. Se quase 3/4 dos entrevistados possuem um sono de má qualidade, provavelmente eles também estão com suas saúdes bucais prejudicadas. A falta de sono age diretamente em diversas áreas do nosso corpo e neste artigo você vai entender qual a sua responsabilidade como dentista no diagnóstico e prevenção de fatores que impactam na qualidade do sono.
Qual a importância do sono para a saúde do paciente
Além de alimentação, atividade física, cuidados com a higiene e momentos de lazer, o sono também impacta na saúde do nosso corpo e mente. É ele um dos responsáveis por fazer a manutenção do nosso organismo, restaurando e repondo as energias e hormônios, necessários para vivermos com saúde e qualidade.
Dormir bem ajuda a prevenir diabetes, doenças cardiovasculares e bucais, e estresse, assim como auxilia no fortalecimento da imunidade, da memória, no controle de peso e melhora o humor, o foco e a concentração. Segundo a Associação Brasileira do Sono (ABS), para que um adulto tenha um sono de qualidade, deve dormir entre 7 a 9 horas por dia, porém, sabemos que a necessidade de horas de sono não é igual para todos e depende de vários fatores e fases da vida.
Fonte da Imagem: Cartilha do Sono 2024
A grande parte dos nossos pacientes sabe que não dormir bem impacta em suas qualidades de vida e saúde no geral, mas será que eles também têm conhecimento sobre o quanto a má qualidade do sono pode prejudicar a saúde da boca, dentes e gengiva.
Qual a relação entre sono e saúde bucal
As pessoas que possuem distúrbio do sono, ou seja, um sono de má qualidade, queixam-se de vários sintomas e alguns deles têm grande impacto na saúde bucal como ranger os dentes, despertar com falta de ar, roncos ou apneias, acordar com dor na cabeça ou no maxilar, e acordar no meio da noite e comer de forma não controlada.
Pacientes que não dormem bem sentem os efeitos negativos de forma duplicada na boca. De um lado, não dormir de forma adequada, ou seja, não descansar o suficiente e com qualidade, pode promover a desidratação da boca. Isso ocorre pois a produção de saliva durante uma má noite de sono é afetada e se há pouca quantidade de saliva, o processo de neutralização do ácido produzido pelas bactérias presentes na boca é prejudicado, favorecendo a ocorrência de mau hálito e até mesmo o surgimento de cárie dentária. A falta de saliva ainda impacta no fortalecimento do esmalte dentário, pois é ela que repõe e mantém os minerais como cálcio e fosfatos. Veja abaixo no gráfico a seguir a relação do ciclo circadiano (o ritmo do corpo) com a produção de saliva:
Fonte da Imagem: PubMed Central
O segundo efeito negativo da falta de descanso correto é o enfraquecimento do sistema imunológico, o que impacta e pode retardar o tratamento no combate a infecções e inflamações orais, como a gengivite e periodontite.
Saiba mais sobre as doenças periodontais
Outro fator que interfere na saúde e qualidade da boca, dentes e gengiva é a insônia no meio da noite combinada com a vontade de comer, a qual é conhecida como Síndrome do Comer Noturno. Além de contribuir com o aumento de peso, depressão, ansiedade e estresse, esse transtorno alimentar ainda contribui para a quebra do esmalte dos dentes, acúmulo de cálculo dentário (tártaro) e chances de surgimento de cáries, já que, na maioria das vezes, o paciente não faz a higiene do dente após a refeição da madrugada.
Como profissionais da área da Odontologia, precisamos lembrar que não é apenas a má qualidade do sono do paciente que impacta na saúde bucal, o inverso também é verdadeiro. Se ele possui algum problema na estrutura bucal, esse também pode ocasionar distúrbios do sono em qualquer idade. De acordo com o artigo publicado no European Archives of Paediatric Dentistry, a dor de dente e o desconforto dentário estão associados a uma maior prevalência de distúrbios do sono. O estudo, que foi realizado com crianças brasileiras entre quatro e cinco anos de idade que apresentavam dor de dente ou desconforto, teve os seguintes resultados a partir do relato dos pais:
- 21% das crianças apresentou distúrbio respiratório do sono;
- 19% possuíam desafios entre a transição sono-vigília, quando o sono é ou muito cedo, ou muito tarde em relação ao ambiente;
- 13% apresentaram hiperidrose do sono, ou seja, suavam de forma excessiva enquanto dormiam.
No caso da pesquisa, as crianças já apresentavam algum sinal ou sintoma incomum na boca, mas o correto é que as pessoas não esperem que eles apareçam para só então procurar ajuda e/ou tratamento. Nós, dentistas, temos um papel privilegiado em relação a saúde e a prevenção de doenças, pois a partir de uma avaliação da estrutura bucal em consultório, da análise do histórico médico e das respostas da anamnese feita tanto por questionário quanto durante a consulta, conseguimos perceber os primeiros sinais de distúrbio do sono e agir antes que eles comecem a gerar dor e desconforto. Reforço sempre em minhas mentorias e treinamentos que devemos lembrar que os sinais precedem os sintomas.
Por meio de análise clínica e técnicas de triagem, conseguimos identificar se o paciente tem ou terá briquismo (ranger dos dentes), se ronca, se respira pela boca durante o sono, se possui apneia ou alguma outra alteração na boca, dentes e gengiva que já impacta de forma silenciosa ou mesmo irá impactar no futuro.
Como analisar o histórico do paciente da melhor forma? Descubra aqui
Como a Apneia do Sono pode prejudicar a saúde bucal
Por meio de técnicas de triagem como a Escala de Sonolência de Epworth, Escala de Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh, Pontuação de Mallampatti e a avaliação clínica, temos a capacidade de identificar se o paciente possui ou não apneia obstrutiva do sono (AOS). Ela ocorre quando a via área é fechada total ou parcialmente enquanto se está dormindo. Os exames e a análise clínica são necessários, pois nem sempre o paciente sabe que possui, já que toda vez que a apneia do sono ocorre, faz reduzir os níveis de oxigênio e pode prejudicar a memória.
A AOS é prejudicial a saúde como um todo e, em especial, à saúde bucal, já que ao ter a obstrução das vias aéreas durante o sono, as pessoas passam a respirar pela boca de forma involuntária, favorecendo o ressecamento da boca e aumentando o risco de desenvolver cáries e doenças periodontais. Além disso, pacientes com apneia possuem uma maior probabilidade de desenvolver briquismo, acordando com dores na mandíbula em função do ranger e apertar dos dentes.
Fique atento durante sua avaliação aos seguintes sinais e sintomas dos pacientes:
- Mau hálito;
- Lábios e boca secos;
- Desconforto, dor ou Tensão muscular facial ao acordar;
- Saliva espessa ou falta de saliva;
- Língua seborreica e ou gretada;
- Sensibilidade e mobilidade dentária sem causa aparente;
- Dor de cabeça matinal;
- Boca ardente;
- Sinais de mordida da bochecha ou língua;
- Dor na articulação temporo mandibular e região adjacente;
- Inflamação gengival recorrente e doença periodontal;
- Desgaste dentário, fissuras de esmalte dentário ou fraturas de esmalte, sem causa aparente;
- Episódios de ranger ou apertar os dentes durante o sono.
Fora os sinais acima, existem outros fatores ortodônticos que podem aumentar o risco de desenvolver apneia do sono, como uma mandíbula retrognática ou diminuição do comprimento do arco, pois contribuem com a constrição das vias aéreas. Quando há restrição do tamanho das arcadas, por exemplo, ocorre diminuição do espaço aéreo da boca e com isso a língua se obriga a se posicionar mais para trás contribuindo para a obstrução do espaço aéreo nasofaríngeo, favorecendo o ronco e apneia.
Ao termos um olhar mais holístico para o nosso paciente, prestando atenção não apenas em sinais e sintomas presentes na estrutura bucal, mas também no corpo por completo, desempenhamos um papel importante na saúde de quem atendemos. Ao identificarmos distúrbios do sono, conseguimos agir de maneira precoce para prevenir futuras complicações bucais e também a hipertensão, doenças cardíacas e derrame. Cuidar da qualidade do sono dos seus pacientes também é cuidar da saúde bucal deles.